O tempo passou, mas minha gastrite ainda grita que você esteve aqui. Tudo foi tão pouco e notável que lembro de uma primeira gota de chuva na testa; pequena, passageira, mas o suficiente para o alerta da tempestade. Muita água veio, molhou, lavou, mas, também provocou enchente e deslizamentos de terra, e só depois que passou é que pude perceber o estrago de um pingo de chuva na testa. Reconstituir o barranco é uma tarefa difícil, o estrago foi feito e os barracos destruídos, agora restam indigentes desabrigados que vagam como zumbis entre os carros da avenida principal estendendo as mãos sujas de terra vermelha. Alguém, por favor, dê um lencinho úmido para o menino limpar a mão, com as mãos sujas será impossível conseguir um trocado. E eu fiquei vendo tudo de dentro do táxi amarelo que apareceu no momento em que a gota de chuva caiu sobre minha testa. Agora, os pingos na janela não me permite ver o caos que está lá fora, sinto apenas o ar condicionado e escuto buzinas dos carros alheios. Um sutil raio de sol corta o carro ao meio chegando à minha testa, e assim percebo que a chuva não cai mais lá fora. Então, abro a janela com a ingenuidade de tomar ar puro, até que olho para o pingo de chuva na testa do menino órfão, e como um cão eu lambo suas mãos vermelhas e como um cão faminto ele me olha e como um cão faminto lambo-lhe as mãos. Pronto menino, vá pedir esmolas com as mãos limpas, mas lembre-se, hoje eu lambo suas mãos, amanhã alguém te esfrega, amanhã alguém te espreme, amanhã alguém te mata... então, vá caçar borboletas elas vão te levar para outro lugar menos vermelho, menos chuvoso.
O táxi continua a corrida para a casa, minha boca vermelha reluz no retrovisor do carro. Quer um pouco do meu batom? E o taxista me beija, apenas o batom vermelho, a pele não sente nada. Chego em casa e observo que me deixaram flores vermelhas... o cartão? Minha gastrite grita novamente na esperança de que elas sejam suas... mamãe lembrou do meu aniversário e minha gastrite volta a me lembrar que aqui você não está mais. Resolvo pintar minhas unhas de vermelho, fico olhando para as flores vermelhas e me pinto, um incentivando o outro, até que tudo vira um suco espremido que agora tomo com ódio esperançoso. Pego a caixinha de recordações e jogo seu perfume, e assim faço um prato flambado, as chamas parecem vir de um vulcão, aquele mesmo que era ativo, mas que agora está extinto. O seu cheiro toma conta de toda a casa e corro para abrir as janelas, vou me despedindo de cada gota sua que vai se esvaindo como a ampulheta decorativa na sala de estar da nossa... da minha casa, tudo está chegando ao fim e abro um Red Label para brindar a última gota, aquela tão sutil como a primeira gota de chuva na testa e que tem o mesmo poder; de alertar algo que acabou e algo que vai começar.
segunda-feira, 29 de outubro de 2007
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Um comentário:
Um pingo na testa
Um cigarro soturno
O canto de uma formiga carregadora
E o vermelho brindando o cansaço de quem não pode esconder
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